A primeira volta: queniano lidera e vira o “coelho”.
A história de
ouro teve início, como de praxe, com um breve anúncio ao microfone. “Falaram:
‘Em suas marcas’ e, na minha mente, eu pensei: ‘Agora é comigo’’, relembra
Joaquim. “O meu foco estava mais em como é que eu iria executar o combinado. Me
lembro que depois da largada, nos primeiros 130 metros, eu tive um momento de
dúvida: ‘Vou ou não vou?’, pensei. E então falei: ‘Não. Vou continuar com a
minha jornada aqui, como o combinado’, e aí fui para a frente”, continua.
“Nos
primeiros 200 metros aconteceu uma coisa fora do comum: eu estava brigando não
pela liderança, pois os primeiros 200 metros, nos 800, é mais de uma briga para
ver quem consegue a melhor posição durante a prova. Às vezes, o atleta tem que
brigar um pouquinho ali. Ele tem que sair um pouquinho mais forte e determinar
logo no começo a posição. E o queniano já estava na minha frente e eu queria
ficar logo atrás dele”, conta Joaquim, referindo-se ao queniano Edwin Koech.
“Mas o
americano encostou e me deixou encurralado. E tive que brecar, sair pro lado e,
ao fazer aquilo, eu peguei a melhor posição durante a prova. Eu só tive que
usar o queniano para me levar pelos primeiros 400 metros, 600 metros. Eu o usei
como coelho”, explica Joaquim, referindo-se ao termo que, no mundo das
corridas, serve para designar os atletas que se posicionam na frente dos rivais
e ditam o ritmo da prova.
Os rivais
Joaquim Cruz
correu naquele 6 de agosto de 1984 com o número 093 na camisa. E ocupou a raia
número 6 na largada. Na raia 3 estava seu principal rival: o britânico
Sebastian Coe, recordista mundial da prova e que, quatro anos antes, tinha
faturado a medalha de ouro nos 1.500 metros e a prata nos 800 metros nos Jogos
Olímpicos de Moscou 1980. Mas havia outras ameaças...
“Eu tinha
vários rivais. Tinha o Ovett (o britânico Steve Ovett), que tinha ganhado a
Olimpíada de 1980, em Moscou (foi ouro nos 800 metros). Tinha os dois
americanos, o Earl Jones, que tinha 19 anos, era dois anos mais novo do que eu
e estava correndo muito bem, e o Johnny Gray, que já tinha participado de
algumas provas comigo na Europa e que também estava correndo em casa. E tinha
os quenianos, além do recordista mundial, Sebastian Coe, que queria ganhar o
ouro nos 800 metros depois de ter perdido a medalha de ouro em 1980. Ele vinha
com tudo para ganhar o ouro em 1984”, diz Joaquim.
“O meu foco foi mais em cima do Sebastian Coe,
porque eu conhecia o estilo de corrida dele. Ele era um atleta forte, muito
veloz e, então, eu tinha que ter cuidado para não cometer o erro que ele
cometeu em 1980 e sair na hora errada. Na final, eu tive que correr a prova
toda olhando para trás e marcando ele o tempo todo”, prossegue.
Arrepio na chegada
A prova dos
800 metros é um jogo breve. São anos de preparação para poucos instantes de
desafio. E nesse xadrez de pernas, os metros finais são determinantes. Em Los
Angeles, Joaquim Cruz sabia disso melhor do que ninguém.
“Durante a
corrida, foquei em alguns pontos importantes. Nos primeiros 200 metros, eu
tinha que brigar por uma posição ideal para evitar um possível caixote (ficar
embolado com outros atletas). Depois que consegui essa posição deu um branco.
Na minha cabeça, eu pensava que tinha que vigiar o Sebastian Coe. Então, fiquei
o vigiando dos 200 metros até os últimos 300 metros. Eu fiquei vigiando o Sebastian
Coe o tempo todo. Se você assistir à prova, vai perceber que a cada cinco
passadas eu dava uma olhada”.
Após ter
concluído a metade da prova com tudo tendo conspirado a favor, Joaquim Cruz
sentiu que havia chegado o momento em que ele teria que assumir as rédeas da
disputa. Mas, naquele dia, ainda seria
preciso controlar os nervos.
“Ali, na
altura dos últimos 300 metros, no final da curva, foi onde eu treinei o meu
corpo e a minha mente para colocar uma segunda marcha. Normalmente, a maioria
dos atletas, eu diria que 95% dos atletas de meio-fundo, começam a puxar nos
últimos 500 metros. Mas, realmente, começam a puxar mesmo, a dar o kick, nos
últimos 250 metros”, explica Joaquim.
“Como eu tenho a
passada muito longa, eu falei: ‘Não. Eu vou treinar meu corpo para sair um
pouco mais cedo, nos últimos 300 metros’. Se você assistir dez provas minhas,
vai perceber que na altura dos 300 metros finais eu abaixo a cabeça e começo a
acelerar um pouco mais. Mas ali, naquele local, na Olimpíada, eu tive que falar
para mim mesmo: ‘Não vai ainda... Tenha paciência’”, prossegue.
“Então eu
fiquei segurando. Mas o ritmo já aumentava automaticamente, porque o queniano
estava puxando a prova. Eu dei uma olhadinha para o lado, senti que o americano
estava vindo, faltando uns 280 metros. Eu dei outra olhada nos últimos 200
metros para o lado e não vi ninguém. Eu ainda estava em segundo. Então, nos
últimos 80 metros, eu falei: ‘Agora eu vou!’”.
Foi nesse
exato momento que Joaquim Cruz – um menino humilde que queria ser jogador de
basquete e que costumava correr descalço pelo Cerrado para brincar quando
criança em Taguatinga – sentiu que algo extraordinário estava prestes a
acontecer.
“Quando eu falei
‘agora eu vou’, eu me arrepiei todo. Eu dei uma olhada para frente, para onde
ficava a arquibancada, e eu já não via mais ninguém. Era como se o povo todo
tivesse se derramado na pista. E as raias... Eu não percebi detalhes nas raias.
Eu só via uma linha toda. Eu me arrepiei e dei o kick final”.
Vitória via satélite
Quando
disparou, Joaquim Cruz deixou de ter rivais no Los Angeles Memorial Coliseum.
Suas passadas longas e rápidas e o ritmo forte nos metros finais foram demais
para Sebastian Coe e todos os outros corredores. Tudo o que eles podiam fazer
era acompanhar o brasileiro com os olhos e vê-lo se distanciando rumo à
vitoria.
Joaquim
cruzou a linha de chegada exatos um minuto e quarenta e três segundos após ter
largado. Com isso, estabeleceu um novo recorde olímpico em 1984. Sebastian Coe
veio logo atrás, com 1min43s64, seguido por Earl Jones (1min43s83). Mas todos
os olhos no estádio seguiam apenas Joaquim Cruz.
Com o triunfo, o
brasiliense se tornou o primeiro atleta do país a ganhar uma medalha de ouro
olímpica em provas de pista. E passados 32 anos, ele segue como o único a ter
protagonizado a façanha.
E aqui cabe
uma observação marcante: a vitória de Joaquim Cruz foi transmitida ao vivo para
todo o Brasil. Com isso, pela primeira vez na história os brasileiros puderam
assistir, em tempo real, um dos seus atletas tornando-se campeão olímpico. A
imagem de Joaquim Cruz trotando no estádio com a bandeira do Brasil após o
triunfo levou milhares às lágrimas.
“Quando
atravessei a linha de chegada, eu falei: ‘Meu Deus, obrigado, meu Deus!’ E a
próxima coisa para fazer era pegar a minha bandeira que estava com o síndico do
meu apartamento lá na curva, na saída dos 1.500 metros. Eu decidi dividir
aquele momento com o povo brasileiro. Foi mais para identificar o meu país, né?
Aquilo ali foi uma forma de identificação e de dividir aquele momento com o
povo brasileiro. Carregar a bandeira do Brasil foi uma forma de comemorar com o
povo brasileiro”, explica o campeão olímpico.
Uma vida plena
É comum ouvir
dizer que o brasileiro não tem memória. Pode ser que seja verdade. Mas, em se
tratando de Joaquim Cruz, essa regra não vale. O ouro conquistado há mais de
três décadas ainda reluz na memória de muitos. E serviu de inspiração para uma
geração de atletas, um deles, inclusive, cujo destino reservou um episódio
igualmente emocionante em Jogos Olímpicos.
“Eu não tinha
televisão em casa. Vi aquela prova quase um ano depois. Me lembro que eu estava
na casa de um amigo e vi aquela imagem, que passou em um programa esportivo, do
Joaquim dando a volta olímpica. Aquela imagem, mesmo um ano depois, foi
determinante para que eu pudesse construir a busca desse sonho de um dia me
tornar um atleta olímpico. Então, me influenciou muito”, lembra o
ex-maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima, medalha de bronze nos Jogos Olímpicos
de Atenas 2004.
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